sexta-feira, abril 02, 2004

Será que o egoísmo ultrapassa o bom senso?

O desenvolvimento de Tomar, a história e a tradição da nossa terra impõem que cada obra de hoje marque a presença não contraditória, na senda que nos une, ao que mais respeitável nos deixaram os que nos antecederam.
Dos problemas com que se têm debatido as grandes cidades no seu processo de crescimento, decorre das incompatibilidades geradas pela incapacidade de resposta urbana aos enormes fluxos que se abateram sobre elas.
É assim que “redesenhar” a cidade a nível urbanístico pressupõem um domínio crítico com vários níveis de complexidade e competências disciplinares, que vão muito para além das geometrias, consubstanciando o domínio de todos os acontecimentos, enquadrando os espaços de vivência e as profundas leituras dos locais. Em Tomar, estes propósitos de intervenção estabelecem-se a partir de vários níveis abstractos de planos, que nunca se chegam a traduzir como desenho da cidade. A profunda lacuna existente na transição para a formalização está à vista, ao qual se adiciona o desconforto gerado pelo caos urbano decorrente da sujeição cada vez maior à pressão da construção, sem se cuidar da qualidade de vida urbana.
A cidade surge cada vez mais como um sistema pulverizado, caótico, irreconhecível nas qualidades de relação que estabelece com as zonas antigas, constituído apenas pelo somatório de obras sem articulação entre si expressando volumosos formalismos avulsos e materiais também em excesso, símbolos de um novo-riquismo latente, pseudo-inovador e egoísta, comprometedor de uma cultura urbana espezinhada pela era materialista do dinheiro.
No meu entender, os Planos directores Municipais, vem tentar dar estrutura parcelar a um caos que não se reflecte apenas nas formas terríficas que constituem a poluição visual com que nos temos de confrontar quotidianamente, mas está a criar a consciência sobre a possibilidade de voltar a dar urbanidade ao que, por falta de visão e de dimensão cultural, se foi constituindo como signo dum modelo de dimensionamento simbolizado por um futuro massificado, desestruturado e sem sentido.
Agora, pergunto a esses senhores, donos do poder citadino, se este conceito de urbanidade imposta pelos planos directores municipais está a ser uma realidade, ou uma mais valia para interesses ocultos na cidade?
Será que os cidadãos estão a permitir a destruição da imagem de cidade, devido a novas práticas arquitectónicas egoístas, de traços rasgados sem sentido de realidade, desrespeitando aquilo que nos deixaram os nossos antepassados? Será que o nosso património visual está a ser respeitado? Será que a nossa cidade está a ser bem requalificada?
Quanto a estas questões, devido a manifestações de poder, fruto de uma sociedade onde tudo chega instantaneamente, e onde pouco se reflecte em profundidade, o objectivo é baixar-se o nível de exigência para manterem-se as estatísticas e ganhar novamente o poder.
Contudo, fazendo mal, não percebem que o são, estabelecem-se como auto-referência harmoniosa na lógica interna do não-saber, fazendo flutuar o seu sentido e o seu saber neste universo de permanente teste. Estamos no fim da utopia, num tempo que, para além de tudo, corresponde a uma mudança de paradigma, dada a falência de muitos modelos de previsibilidade. Ver um plano à frente dos olhos já não chega. Há que encontrar para tudo um novo e profundo relacionamento, um questionamento constante, pois deste modo facilmente se demonstra a falência de todo o sistema instituído. Para ter visão, não é necessário ser visionário, basta ter bom senso. E é esse bom senso que deve levar a que se utilizem adequadamente os recursos naturais, culturais, humanos, históricos e urbanos, para uma cidade evoluída e com qualidade de vida.

Hélder Bernardino
(publicado no jornal «Cidade de Tomar» de 2.04.2004)